segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

digestório

arranquei algumas palavras do esôfago
rasgando a faringe
afago
trancado
perdido
como poeira presa na traquéia

algum eu te amo nunca dito
queimando na boca do estômago
preso na caixa torácica
com
coração ácido e enzimas

o fígado apoiado em cacos
suco gástrico
afago
trancado
perdido
nas trevas dos intestinos

algum eu te amo nunca dito
se perde com a mucosa
desce reto acima
e
foge pela boca morta

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Primeira história sobre dois caras

1.
Antes de tudo vem: conheceram-se num bar. Alto de noite. Um exagerará na bebida, o outro andava vidrado em outros lances. Um tomava gin-tônica com duas rodelas de um tipo de limão amarelinho. O outro periodicamente ia até o banheiro, cruzando a mesa de um tipo que tomava gin-tônica com duas rodelas de limão. Um tinha o olhar pesado, vestia jeans e camisa bege. Vez em quando empurrava os óculos com a ponta do indicador, realocando-o corretamente sobre a cartilagem do nariz. O outro saia do banheiro metido em seu jeans e camiseta branca.

– Ta bebendo o que?
– Gin.
– Quer rachar umas cervejas?
– Não sei. Que horas são?
– Não sei.


2.
Mudaram de bar; durante: Falaram de Huxley, Almodóvar, da Calcanhotto, do Bortolotto (que tomou uns tiros), e Bethânia, Gal, Hitchcock, Rô Rô, Mirisola, Buñel, Reinaldo Moraes, Caio F., Orwell, Ignácio de Loyola. E pediram cerveja para brindar. O rapaz de camisa bege encheu os dois copos e propôs um brinde ao “Não verás país nenhum”.

– E que o Souza não esqueça da porra do paletó. – brindaram.
– E o guarda-chuva de seda preta.

Riam alto. Procuraram juntos Piazzola na junkebox, não acharam. O de camiseta branca falou que tinha-uns-discos-em-casa-e-se-esfriasse-ainda-tinha-conhaque-e.

– Ainda tenho algum pó, curte?
– As vezes. Hoje não.
– Bom, eu vou ao toalete.
– Ide em paz.
– O senhor não me acompanha?
– Hoje não, cara.

Sacou o maço de L&M do bolso da camisa bege, conferiu, seis cigarros e um baseado. Aguardou o outro voltar com sua camiseta branca, olhos verdes, All Star preto, jeans surrado, e um sorriso bonito. Acendeu um cigarro.


3.
– Acho que eu vou cair fora.
– Já. Vai de táxi?
– Acho que tenho um ônibus e tal..
– A gente só tomou três cervejas!
– Eu, meio que, já estava bebendo e sei lá.
– Tu é quem sabe. Eu moro com uns amigos, nesse horário ainda deve estar tocando um The Doors em casa.
– Queima um beck?
– E porque não?
– Não sei, normalmente quem vai em um não gosta muito do outro.
– Eu gosto dos dois. Dos três.
– Tipo, o que vier?
– É, tipo isso. – riram.

O rapaz de branco se levantou:

– Vou no banheiro de novo, cara, agora é só pra mijar mesmo. Cerveja é foda, da uma mijadeira do caralho e a rapaziada fica pensando que se ta cheirando horrores e nada, é mijo mesmo.
– Pode crer. To meio bodeado, meu, to afim de mandar uma.
– Hun, pega aí.

Passou um maço de Marlboro pra ele. Seis cigarros e um pino.

– Tenho mais um aqui. Pode acabar com esse.
– Valeu, falou.


4.
A noite esticou. Pagaram as sete cervejas e desceram até a praça pra fumar. O rapaz de olhos verdes tinha feito teatro. O que ajeitava o óculos com o indicador tocava um pouco de violão. Um reparou que embaixo dos cabelos abastados, castanho escuro e encaracolados, o rapaz de bege, tinha um par de orelhas bonitas com um brinco de argola. Também usava All Star e tinha um olhar pesado, cansado de alguma coisa. Outro achou já ter visto alguma peça em que o rapaz de calça escura e surrada havia interpretado o Trotsky. Os dois sorriam, leves. Como se fossem anjos com asas de algodão rodando a noite, queimando fumo, aspirando cocaína, bebendo vinho.

– Posso tirar uma foto da tua orelha?
– Qual das duas?
– A que tem brinquinho.
– E, porque?
– Sei lá, meu, deve ser brisa.
– Então tá.

O homem de branco tirou um celular do bolso e foi fotografando a noite, as orelhas, os óculos, os dentes, a boca. Divertiam-se, faziam poses, subiam em arvores, bebiam o que restava do vinho. Inalaram o que restava do pó. Acenderam a ponta. Acenderam o sol.


5.
Os carros – de algum modo – coloriam o negro do asfalto e acinzentavam o céu. A noite morreu. Os dois continuavam na praça. De algum modo, continuariam ali para sempre. Depois, vem o tudo.

– Agora topa o conhaque, tipo, saideira?
– Don’t have money, baby.
– O conhaque que eu tenho em casa. Talvez tenha um pouco de fumo por lá..
– Acho que não.
– Ok.
– Me deixa seu telefone.
– Tu nem vai ligar!
– Acho que sim.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Primeira história sobre meu pai



(que minhas cinzas alimentem a erva

E que a erva alimente outro homem como eu
Porque eu continuarei neste homem,
Nos meus filhos)


meu pai bateu as botas e não viu o mengão. continuação. a vida segue. não a dele. depois dos nove (ou por aí), ele deu o fora. deu o fora. não que tenha “dado o fora” mas; saiu. avançou pela linha de campo. ficou eu, a mãe e o irmão. segui a direção do vento. herdei uns discos do Raul. brinquei com minha falta de memória e passei minhas férias em Guaianazes. não guardo a infância. não guardei. passei algumas férias em Guaianazes. o sobrado que havia sobrado. antes disso eu caçava vaga-lumes e os enfiava num pote de margarina. não fui escolhido para o time.

antes disso: eu subi encima do muro e raciocinei com ímpetos de desfabular verdades incontestáveis. descobri que vinte tá bom. o número vinte era o máximo para mim. mais que isso é sobra. Diógenes só precisava do sol e tal. estava falando do sobrado, certo?

quando meu pai morreu. e eu não pude viajar pra vê-lo moribundo. estava me realocando no mercado de trabalho. abiscoitando subempregos. herdei uns discos, tá legal! comecei a fumar um tempo atrás. já faz um tempo. meu pai não soube. não vai saber. eu tinha saudade – bastante saudade – agora, continuo tendo saudade. ele poderia der visto o Flamengo campeão. acho que faria bem.

eu era a hecatombe dos vaga-lumes. lhes usurpava a grama-verde-tranquila-orvalhada e lhes abençoava com o pótinho amarelado da margarina. azar preles. quem mandou ter as bundinhas com lampadinhas verdes? daí que, nas férias em Guaianazes eu tentei empinar pipa, rodar peão, jogar vídeo game e ser escolhido pros times. nem fudendo pra mim. arrisquei também, talvez por desforra, tocar umas do Legião Urbana num violão que eu roubei da minha tia.

mas tudo bem, vinte tava bom pra mim. e quando eu achei que Guaianazes não era tão longe assim ele foi pro Tocantins. minha mãe me disse que ele gostava mais do bar do que dela. creio que sim, pois. ele comprou um bar e foi morar nele com minha madrasta. os vaga-lumes morriam – evidentemente. não ficou muito da infância. uma tarde fizemos bolinhas com massinha de modelar e jogamos juntos na parede. só pra ver grudar. mas não sei se ele estava ou se eu fantasiei esse evento. assim como o do número vinte.

aí que, eu, irmão e mãe seguimos. enquanto ele morava na zona leste (e eu achava que era longe) eu não era escolhido para o time e respondia pelo miojo do meu irmão mais novo. mudei de casa umas vezes pelo Imirim. conheci lugares, fiz amigos. fiz amores. e fui ficando – mais velho, amargo, melancólico –; comecei a fumar.

tentei criar uns periquitos. morreram de fome. tentei cuidar de uma ramister (ela era caolha) e ela morreu de tanto comer. os traumas levam a novos erros. me dei bem em uma ocasião com uns pezinhos de rabanetes e algumas vagens de feijão. o milagre da criação. eu era o deus dos rabanetizinhos. porém, não levava jeito com as coisas vivas. e fui me desapegando. não sei. era por aí, meu irmão ia crescendo e ficando com a cara do velho. e eu o guardava, particularmente, nas mãos. minhas mãos são iguais a dele. menores. e fritava os hambúrgueres pro meu irmão; ele foi crescendo.

me veio outro irmão. parte de pai e tal. visitei o Tocantins. mais precisamente o interior do Tocantins. quando eu nasci (se fosse mulher seria Kelly) o Tocantis nem existia. era Goiás. minha mãe veio do Paraná com vó and vô, pra ver qualé qui eram os grilos por aqui. quando meu pai começou a fumar apanhou de cinta uma tarde inteira. não largou. ele queria ser desenhista e acabou impressor chefe de grandes gráficas e pá. eu desenhava. uma vez desenhei o Sonic e minha mãe acho que ele tinha passado em casa. mas não passou. larguei.

foi aí que eu fumava maconha demais, bebia além da conta e só escrevia coisas tristes. não arrumava um trabalho cool. nem pensava em faculdade e a porra toda que dignifica o filho duma puta do homem. escutei muito rock and roll, sabe? sangrei horrores e não tive um filho. quando ele morreu, minha madastra estava grávida. minha primeira irmã. ou, como se diz por aí, meia irmã. ele não viu minha meia irmã nascer e nem o mengão ser hexa. agora deu.

o sobrado foi vendido. o bar ficou vazio. eu continuo fumando. continuo melancólico. dia desses briguei com minha mãe. ela disse que eu amava minha madrasta. ela, a madrasta, ficou na minha cuca junto a uns bijus com café e uma filha que nasceu sem pai. sem meu pai. ele não viu o Flamengo campeão brasileiro. eu nunca mais vou ver meu pai. ficou uns discos do Raul e a morte, surda, [que] caminha a meu lado E eu não sei em que esquina ela vai me beijar.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Primeira história sobre Dulce

Virou a chave na porta e escolheu um disco; Nelson Cavaquinho. A agulha rangeu os primeiros soluços. Se serviu de vodca, sem gelo e sem água. Sorveu o copo. Da janela do apartamento assistiu ela indo embora. Levava uma mala e meia dúzia de esperanças. Acendeu um cigarro e buscou outra dose. Junto a vodca, o gosto salgado de lagrima, de ranho, de choro. Olhou para porta como se a campainha fosse tocar. Não tocou. Ela se foi – repetiu pra si –, ela se foi. Tentou deitar, deixar passar, esquecer. A bebida rodava junto ao disco. Precisou vomitar. Vômito ardido, grito da boca do estômago. O medo da solidão é pior que a solidão. Lavou o rosto, deixou a água escorrer molhando o peito, encharcando o colarinho da camiseta. Olhou novamente a janela. Ela se foi – repetiu –, e não podia ser diferente. É difícil o amor porque acaba. A dor é foda. Enrolou um baseado frouxo e não acendeu. Rodava com o disco. O cigarro queimou sozinho no cinzeiro. A cinza cumprida, solitária, abandonada. Voltou pra vodca. A dor do estômago era a mais amena. A noite não ia ser fácil, talvez impossível. Olhou pra cinza, sozinha, como se a campainha fosse tocar. A agulha completou o lado do disco. Era hora de mudar. Hesitou, achou que a campainha ia tocar. Virou o disco. Limpou o cinzeiro e voltou para janela, com o baseado frouxo na mão. Tremia. Socou a mão no bolso e tirou um pino, cheirou a metade e guardou a outra. A campainha podia tocar. O ar pesado. O apartamento pequeno.

Virou a chave na porta e desceu as escadas. Noite sem lua. Precisava dizer que queria que a campainha tocasse, que queria que ela voltasse. Que ainda amava. Mas era tarde. Caminhava rápido, passo pesado. O peito ainda úmido batia forte, rápido. Ela se foi. Escolheu a esmo um lado, correu. O ranho escorria do nariz, o ar faltava no peito. A campainha não tocou, ela se foi. Meio trôpego, meio elétrico. Encontrava ela em todas as pessoas que passavam, em todos os vultos, em todos os passos, vagos vão. Limpou o ranho na camiseta, de colarinho úmido. Não encontrou. Não podia desistir. A campainha jamais iria tocar. Mandou a outra metade da cápsula. Percebeu uma garoa filha da puta. Parou num bar. Pediu conhaque, sem gelo nem limão. Ficou na porta a espreita, encontrando ela em todas as sombras, em todas as poças. Pagou o drinque e correu, ao léu. Gritou seu nome até a garganta travar. De vômito, de solidão, de pó. Tentou outras ruas, outras avenidas, outras vias. Tentou fumar.

Acordou. O lençol amarelo tinha uma mancha de sangue na altura do rosto. No banheiro viu no espelho as marcas incrustadas no rosto. Em meio aos coágulos inda escorria sangue. Sentiu a água escorrer, encharcando o peito. Na sala; a agulha ainda riscava um disco. Escolheu; Cartola. Fez café. A campainha não iria tocar. Acendeu um baseado frouxo.